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A peste que nos habita, a partir do livro “A Peste”, de Albert Camus
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Pandemia: os idosos estão à margem ou sempre estiveram em lugar de cativeiro social?
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Mamãe está com Alzheimer | 1
O estranho familiar
Ela acordou naquele dia e não sabia onde estava. Foi até o banheiro, passou uma escova nos cabelos e comentou:
– A água daqui faz muito bem para o meu cabelo. Ele está sedoso …
Sugeri que se deitasse novamente. Tinha acabado de tomar o remédio e precisava ficar 30 minutos sem comer. Era muito cedo, expliquei, ela teria tempo de descansar esses 30 minutos e depois se aprontar para o café. Eu a chamaria.
Ela acatou a sugestão, mas levantou-se em seguida, um tanto exasperada. Como faria para ir embora?
– Eu não sei nada aqui, que ônibus eu pego?
– Para onde você quer ir? — perguntei.
– Para casa, mas não conheço nada aqui – disse mostrando uma certa apreensão.
Coloquei as mãos sobre os seus ombros com carinho e levei-a de volta para a cama. No caminho disse que não se preocupasse, eu cuidaria de tudo.
Quando me virei para sair do quarto, ela disse em um tom de voz bem mais tranquilo:
– Não sei nem se preciso pagar o hotel.
– Não se preocupe, eu vou cuidar de tudo.
Tranquilizada, ela cochilou. Passaram-se os minutos necessários e fui chamá-la para tomarmos café.
O passo a passo precisa ser respeitado.
Antes de qualquer coisa ela arruma a cama. Primeiro tira tudo, deixa somente o lençol que forra o colchão. Desliza as mãos sobre ele, esticando bem. Depois vai trazendo cada peça, uma de cada vez, se movimentando lentamente entre o quarto e a salinha de estar onde as deixara. Arrasta os pés fazendo um chiado no carpete. Vai e volta até que a última almofada decorativa esteja sobre a cama.
Depois faz a higiene, lava o rosto com cuidado e água fria. Apesar da temperatura um tanto baixa, sempre dispensa a água morna disponível na torneira. Acha um luxo desnecessário.
Penteia novamente os cabelos e volta para o quarto para se trocar. Todo esse processo demora uns 20, 30 minutos. Quando finalmente nos dirigimos para a cozinha, a campainha toca. A acompanhante do dia chega, a cumprimentamos e começamos a esquentar as xícaras com leite no micro-ondas.
Ela não fala mais sobre voltar para casa, apenas me olha e diz que estava com frio, mas que com o calor do forninho onde esquentávamos o leite, havia se aquecido.
Antes mesmo de ela terminar a frase, a acompanhante ri com deboche, e começa a explicar para ela que aquele era um forno de micro-ondas, que ela não poderia se aquecer porque ele não emite calor. Corto a frase antes que ela compreenda e fique constrangida. Digo que é bom mesmo pegar um calorzinho. Por ora a acompanhante se recompõe, na próxima oportunidade fará o mesmo, expondo desnecessariamente seus desentendimentos com o mundo. Não se eu estiver ali para evitar.
Na véspera, após o chá da tarde, depois que as visitas se despediram, foi a vez de a filha mais nova ir embora. Assim que fechamos a porta ela comentou;
– Essa moça é tão queridinha! Gosto dela. — E manteve por alguns segundos um sorriso terno no rosto. Mais uma vez não havia reconhecido essa filha.
Mas comecei pelo fim. Esses talvez tenham sido meus últimos dias com ela nessa casa, que não é um hotel, mas o lugar onde ela mora há exatos 43 anos. E talvez tenha sido a última vez que ela sabe quem sou, e que possa se sentir confortável só pelo fato de eu dizer que vou cuidar de tudo.
Como eu disse, comecei pelo fim. Essa história começou há quase 60 anos. Ou, se preferirem, há pouco mais de 80 anos. E comporta muitas vidas e muitas histórias.
𝑯𝒆𝒍𝒆𝒏𝒂 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒔𝒕𝒓𝒐 𝑨𝒇𝒇𝒐𝒏𝒔𝒐
𝑷𝒔𝒊𝒄𝒂𝒏𝒂𝒍𝒊𝒔𝒕𝒂
Rio de Janeiro | 28/10/2015
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