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Fazer-se mãe

(Continuação do post Não querer ser mãe (e ser mãe sem parir)”. Clique para ler.

Se ela tivesse lido a metáfora escrita no corpo daquele rapaz, teria recuado diante dessa proposta?

De uma coisa ela tinha certeza, se não desde sempre, há muito tempo: ela gostava de crianças e de estar com elas. Achava esses momentos preciosos, divertidos e cheios de descobertas.  Há uma energia que perdura um bom tempo depois que a brincadeira acaba.

Vinha de uma família grande, três irmãs e um irmão. Era natural, portanto, que a partir dos seus 20 anos danasse a nascer sobrinhos. Em média, um nascimento por ano.

A convivência próxima com os sobrinhos ensinou a ela duas coisas que jamais esqueceria: se por um lado passar algumas horas com crianças é uma experiência incrível, cuidar delas em tempo integral beira a insanidade!

Que fique claro, não foi essa perda de ilusões que a fez não desejar ser mãe: essa ideia já a habitava há muito tempo.

Para além do que no seu consciente era sabido — a sua vida com aquele rapaz iria ter a presença próxima e constante de crianças — havia a cena que se deu de inconsciente para inconsciente. Aquele homem trazia nele duas meninas e um apelo, dirigido a ela: “Quero cuidar das minhas filhas, como eu faço?”

Foi sabendo sem saber que ela, ainda nos primeiros dias após o retorno das férias, disse sim ao rapaz carioca.

Escreveram cartas, bilhetes, telegramas (à época não havia e-mail). Ele mandou flores, presentes que lembravam os dias que passaram juntos no Rio, e até pegadinhas.

Ele pediu que ela fosse à filial da empresa para a qual trabalhava na cidade dela para pegar uma encomenda, mas que não abrisse lá. Curiosa, mal botou o pé na rua, abriu o presente: caixa-surpresa com uma cobra de mola que saltou longe. A gargalhada dela fez acender as luzes dos postes e disparar sirenes e buzinas. Quando contou para ele ao telefone a cidade tremeu de novo, de tanto que riram. O traço de humor nos sujeitos faz isso: acende luzes.

Passados 24 dias da cena do aeroporto e ainda mal aparadas as arestas com os pais, que não queriam ver a filha partir com um desconhecido que “abandonou uma mulher com duas crianças”, ele chegou à cidade dela para buscá-la.

Voltando um pouco. Ainda nas férias ele perguntou se ela queria ter filhos. Foi categórica ao dizer não. Ele quis saber, mas nem unzinho? Não. Um menininho? Não. Filho é um, ou dois, unzinho não existe e nunca se sabe se virá menino ou, quem sabe, duas meninas gêmeas, já pensaram? Numa tacada só a prole deles aumentaria em 100%.

O assunto nunca mais foi retomado, a não ser por volta dos seis meses de casados quando, devido às dificuldades com anticoncepcional, ela pediu a ele que fizesse vasectomia. Para tomar uma decisão tão definitiva, que ocorreu, foi preciso falar sobre o assunto maternidade.

No começo as brincadeiras com as meninas eram maravilhosas e divertidas. As historinhas infantis eram deturpadas para se tornarem cômicas. Havia diversão, mas as dificuldades também davam sinais.

Um dia, conversando com uma pessoa próxima de toda vida, ela falou sobre as dificuldades em lidar com a situação. A moça em questão tinha vários filhos e aconselhou: “Faça como a fulana, tenha filhos que ele esquece essas, deixa elas para lá”.

Calou. Não havia o que dizer. Ela não queria ter filhos, muito menos os teria para afastar um homem dos filhos que já tem.

Foi conversar com uma amiga que não tinha (ainda) filhos. Ali perto, a mãe da amiga ouviu e disse: “Mas ele quer estar o tempo todo com as filhas? Todo mundo quer viajar, passear e deixar os filhos, se livrar um pouco…”.  Esboçou um sorrisinho amarelo, despediu-se e saiu. Estava claro que somente ela poderia responder à questão sobre que papel ela queria ter naquela família.

A madrasta está ali, é a mulher do pai. Mas e frente àquelas crianças? Há um nome, madrasta, mas esse nome não diz da função dessa mulher-madrasta. Ela teria que definir a sua função, mas qual participação ela queria ter na vida daquela família que já existia antes dela?

A vida como ela é. O convívio deles era feito de camaradagem, diversão, mas também de antagonismos, animosidades, raiva, que é o outro nome do ódio. Muita coisa ao mesmo tempo para uma jovem que saiu da casa dos pais direto para a casa do namorado de 14 dias em uma cidade distante.

Antes mesmo de conhecê-la, ele já fazia análise. Dois anos antes, ainda casado, na expectativa de viver melhor, ele fez movimentos de mudança muito significativos. Sem saber bem o motivo, parou de fumar, começou a correr e entrou para a análise.

Ela desde sempre desejava saber mais sobre psicanálise. Aí foi dizer isso a ele e, com sua ajuda, ela começou a buscar um psicanalista. Foram meses de buscas. Assim, ao completarem um ano de casados, ela começou seu primeiro percurso de análise.

Com a análise e a ajuda do marido, ela pode nomear aquele encontro de dois adultos e duas crianças: família.

Ensinou às meninas que eram uma família, que se algum desconhecido comentasse “Essa é a cara da mãe”, e isso ocorria muito, bastava sorrir. Isso acontecia com frequência porque se viam como família, o levava os outros a também os verem como tal.

Quando ela veio de sua cidade, trouxe o emprego, mas mesmo trabalhando levava as meninas ao dentista, às consultas médicas, ia às festas da escola, primeira comunhão, jogos de handball, aulas de jazz…

Iam todos juntos nas férias para a casa da família dela. Enfim, uma família, com todas as benesses e dificuldades de se viver em família.

A adolescência das meninas e os 35 anos dela chegaram ao mesmo tempo. Adolescência dos filhos requer um luto dos pais. Nessa fase, eles estão saindo dos pais e se dirigindo aos amigos. E esse movimento intenso de mudanças repercutia nela e coincidia com o momento em que no imaginário social encerra-se para as mulheres o período “apropriado” para gestar e parir uma criança.

Aos 35, próxima de completar 10 anos de análise, a não poderia se dar ao descaso de não escutar que a gongo estava soando para ela.

Aí foi tão fundo quanto pode na questão. Um lado dela via crianças no parquinho e pensava que seria bom começar de novo. Logo vinham à sua mente a lembrança das sessões de Superman lotadas, o corre-corre na pracinha entre o balanço e a gangorra.

Sabia também que para parir um bebê ela teria que encarar o fato de que o marido era vasectomizado, mas não podia prosseguir sem refletir sobre o assunto. Não seria justo com ela mesma passar adiante sem considerar que em algum momento de sua vida esteve frente a frente com essa deadline.

Atualmente, contaria com a luz trazida pelos textos e estudos de psicanálise. Recentemente, colheu no Instagram da psicanalista e escritora Malvine Zalcberg (@zalcbergmalvine) uma reflexão sobre o tema. Malvine aponta que, diante da possibilidade de escolha das mulheres quanto a terem ou não filhos, é recomendável que “Cada mulher se pergunte: será que eu ‘quero’ ter um filho? E se a resposta for sim, se perguntar, a seguir: ‘por que’ eu quero?” Sem esses recursos à época, levou, quanto pode, o tema para a análise.

Não sabe bem se foi por querer ou por pura denegação, enquanto se perguntava ‘quero ter um filho?’. Sempre contrapunha a ideia “crianças pequenas dão trabalho” às benesses dos momentos compartilhados com as meninas adolescentes.

Nessa fase de vida dos filhos, os pais perdem muito, mas sem dúvida ganham também com a aquisição de alguma autonomia por parte deles. E no caso dela, havia o que destacar como positivo. Para as festinhas pediam roupas da madrasta emprestadas, davam os primeiros beijos, aprendiam a se maquiar. Em suma, se inventavam como mulheres. Tinham também os sábados dos giros pelas lojas para comprarem roupas, juntas, e depois almoçar em algum restaurante charmoso.

Por fim, ela decidiu que o melhor seria apostar que no futuro viriam os netos.

E a mãe das enteadas? A mãe não foi excluída, cada uma teve seu papel. As funções paterna e materna circulam no casal parental. Muito da inscrição do nome do pai é feita pelos ditos da mãe para os filhos. Acredito que os traços dos diferentes estilos de maternagem da mãe e da madrasta tenham se inscrito no psiquismo daquelas meninas.

Por volta dos cinco anos, uma das esteadas questionou as diferentes abordagens no modo de educar entre ela e a mãe. A madrasta, então, explicou que há formações familiares diversas. Em algumas, as crianças têm somente pai; outras, só a mãe, outras ainda, são criadas por uma avó ou um avô. Elas tinham mãe, pai e madrasta, e que se isso era bom ou ruim elas poderiam avaliar melhor quando crescessem.

Hoje, quatro décadas depois do encontro na praia, ela vive feliz com a sua opção de ser mãe sem parir. E como previa, os netos trouxeram novas alegrias e experiências amorosas.