Para onde foram os rostos familiares?
Observando a cidade enquanto caminhava até uma floricultura, Clarissa pensava: “(…) importava mesmo que tivesse que desaparecer um dia, inevitavelmente? Tudo aquilo continuava sem ela. Sentia-o? Ou seria um consolo achar que a morte acabava com tudo, absolutamente?”.
Ao ouvir esse trecho do pensamento da “Mrs. Dolloway”, livro de Virgínia Woolf, ela lembrou que a cidade onde nasceu hoje lhe parece estranha, e que quando anda por suas ruas e avenidas pergunta-se para onde foram os rostos familiares: estariam todos mortos?
Não nascera naquele lugar exato da cidade, mas havia morado ali por dez anos, do final da adolescência aos 25, quando enamorou-se de um carioca e se mudou para o Rio, contrariando as expectativas da mãe, que a queria sempre por perto, ao alcance da mão.
Nesse tempo tinha intimidade com as ruas, avenidas e lojas. Conhecia as palmeiras imperiais que se enfileiravam ao longo da principal via desde o início do século XX. Ao sair à rua, muitos rostos lhe eram familiares.
Hoje, como a personagem de Virgínia Woolf, quando está em sua cidade tem a sensação “(…) de estar fora, longe e sozinha no meio do mar (…)”.
Novos bares, restaurantes, livrarias e cafés enfeitam e enchem as ruas do velho bairro com um burburinho juvenil. Para onde foram os rostos conhecidos? Entra em um café, senta-se e observa. De onde saíram tantos jovens que jamais a viram circular por aquelas ruas em um vestido azul royal e sandálias salto dez, na mesma cor, magnetizando olhares em seu desfile sob as palmeiras plantadas ali desde 1917?
Hoje ela é um corpo estranho na cidade. Seu pai partiu há quase 30 anos e sua mãe se recolheu, compulsoriamente, desde que foi acometida pela doença de Alzheimer.
Sentada no café, imagina como seriam as pessoas que viveram ali muito antes dela. Quando chegou àquela parte da cidade, ali pelos 15 anos, as famílias judias que massivamente ocupavam os imóveis do bairro também deveriam tê-la estranhado e se perguntado de onde ela haveria de ter surgido.
Como a Clarissa da história de Woolf, ela queria saber se desaparecemos do mundo. A morte seria mesmo um sono eterno ou uma vida eterna em outra dimensão? Ou esses jovens que ela vê seriam moradores antigos, renascidos em outros corpos?
Quem saberá, um dia, que ela esteve ali?
Tudo acaba? Então, quem saberá, um dia, que ela esteve ali? Que bem naquelas ruas viu seu corpo de menina se transmutar em um corpo de mulher? Ninguém mais saberá que algum dia ela passou por aquelas vias, morou naquele prédio antigo da esquina da Cauduro? Para onde iriam seus pensamentos, delírios, sonhos, amores?
Lembrava do dia em que, voltando do trabalho no início da noite, ao atravessar uma das três pistas duplas da avenida havia desejado que um carro a arrastasse até que não restasse um único suspiro. Às vezes lhe parecia que a dor de um carro que a esmagasse seria mais amena e rápida do que a dor de alma que ela carregava sem descanso.
Às vezes a vida dói demais, ela bem o sabia, mas passados tantos anos desse pensamento furtivo, ela bendiz ter encontrado caminhos que a ajudaram a escoar a sua dor.
Mais recentemente, diante do avanço da doença da mãe, ela se pergunta como será aquela cidade sem a mulher que de tanto desejar que a filha vivesse, traz calos e cicatrizes no coração.
Sente como se a falta da mãe, se não fosse suficiente para abrir uma fenda profunda no mundo, pelo menos faria sangrar a cidade.
Não, não pode ser, a dor não será só dela, afinal, o mundo perderá uma mulher que não é qualquer, é a sua mãe.
𝑯𝒆𝒍𝒆𝒏𝒂 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒔𝒕𝒓𝒐 𝑨𝒇𝒇𝒐𝒏𝒔𝒐
𝑷𝒔𝒊𝒄𝒂𝒏𝒂𝒍𝒊𝒔𝒕𝒂
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- Gracias, @aelisabethbittencourt, por seu lindo texto sobre #virginiawoolf
- Arte: @aluisioaffonso, com uso de IA