>> Continuação da postagem Mamãe está com Alzheimer 2 | Um longo velório
É novembro, os gânglios voltaram
Cinco anos de idade, consultório médico, centro de Porto Alegre. Mãe e filha, lado a lado, o médico olha os exames e dá a sentença: não há o que fazer, a menina irá morrer em seis meses.
Na cena seguinte, a mãe anda rápido pelas ruas próximas ao consultório. Em desespero, puxa a menina pela mão com tal força que fica difícil acompanhar.
Próxima cena: a entrada do Banco do Brasil, uma porta que para a menina parece gigante. Atendendo ao pedido da mãe para que entrasse e chamasse o pai, ela empurra a porta e grita “Pai, a mãe está aqui”. Aseguir, olha em volta e vê um monte de homens rindo sem que ela entendesse o porquê.
A mãe fala, gesticula, o pai a abraça, olha para a menina. Desespero? Dó? Aquele olhar dizia alguma coisa, mas ela não ouvia nada. Também não tinha ouvido a sentença do médico. Soube muito depois. Em sua memória apenas registros de imagens, nenhum som.
Era a segunda vez que morria. A primeira fora ao nascer. Médico dá a sentença: vai demorar, vou tomar um café. E some! Cordão umbilical enrolado no pescoço, a mãe e uma freira se esforçam na sala de parto. Até que a freira, num golpe de agilidade — ou de sorte — consegue cortar o cordão e libertar o bebê. Sai com a menina nos braços, roxa, desfalecida, encontra o pai no corredor e faz que não com a cabeça. Ele entende, o bebê não viverá. Deve ser por isso que a certidão de nascimento foi feita dois meses depois, pela mãe, essa que sempre acreditou que esse bebê vingaria.
Aos cinco, gânglios fazendo ínguas pelo corpo. Febres e infecções se sucedem.
A mãe a levou a outro médico, muitos exames, uma biopsia, depois, a prescrição: dois anos de injeção. Por noites e noites era acordada com a fincada da agulha. De dia a tarefa cabia à Adelina, com seu uniforme de enfermeira e sua agulha gigante.
Queria brincar. Ouvia o ruído das crianças lá fora, queria estar com elas! Pedia, implorava! “Febre alta, muito frio lá fora, não pode!” Até hoje, quando ouve ruído de crianças, sente uma felicidade nostálgica. Pulsão de morte no leito, vida pulsando lá fora.
Aos 13, final de tarde de um dia de verão, subindo em uma árvore, sentiu algo estranho. Chamou a mãe, que chamou o pai. Os gânglios voltaram. Dia seguinte estavam no pediatra. Vergonha! Sala de espera repleta de crianças, e ela, uma adolescente, ali, fazendo o quê?
O médico examina, é, os gânglios voltaram, mas quer saber?, deixem essa menina viver, esqueçam isso! E dá a sentença: ela está curada.
A menina sorri, vitoriosa. Levanta a sobrancelha esquerda, olha para os pais e declara: “Ouviram? Me deixem viver!”
Aos 50, comemora, multiplicara por 10 a expectativa de vida que a sentença do médico havia prescrito. Ficar doente está fora de cogitação. É como se tivesse feito um pacto consigo mesma, correu para a vida!
Se algo a acometia, não costumava contar a ninguém, principalmente aos irmãos. Vai passar logo, ninguém precisa saber. Tudo menos voltar ao lugar da infância. Irmãos, cuidem dela, ela é frágil. Acreditaram. Isso gerou amor e também ódio. Ao ponto de quando estava sozinha com os irmãos, sempre temer o pior. Haveria uma vingança, para a protegida da mamãe! Puro imaginário, fantasia, porque deles nada sabia.
Aí a menina chega a 2016. Primeira noite do ano, sonha. Se vê linda em um longo vermelho de gala. Acorda e pensa: esse é o meu ano.
Na estrada, caminho de volta do feriadão de Ano Novo, resolve brincar. Web existe para isso, diversão. Bota lá, sonhar com vestido vermelho. Prosperidade, reconhecimento profissional. Não disse? Esse é o meu ano! Outro site. Se você está usando um vestido de noite, pode ser um sinal de que em breve você terá problemas de saúde ou uma doença que logo passará. Não brinco mais!
O ano de 2015 terminou em angústia. Real, aquele que não cessa de não se escrever. Sucessivos lutos se impondo desde que a mãe recebeu a sua própria sentença: doença de Alzheimer. Esse é o nome do velório que se dá com o morto ainda vivo. Mata devagar e a morte pode ser acompanhada passo a passo, como em um reality show macabro.
Analistas são aqueles que conseguem lidar com a angústia, diz Lacan com fina ironia no Seminário 10.
Desde 2013, real, angústia, luto. Depois do sonho do vestido vermelho, pensou quanto era forte. Sendo soterrada pelo Real, cutucada pela angústia, fazia algo com isso. Pulsão de vida, pulsão de vida … desejo!
Mas o real não tira férias. O celular tocou naquela manhã de janeiro interrompendo a corrida. O Real dessa vez entra pelo ouvido. Vai ao chão, chora. Isso não, isso não pode suportar. Para de correr, faz o caminho de volta chorando convulsivamente. Angústia em estado bruto.
Lacan prossegue: “… a angústia não parece ser o que sufoca vocês, como psicanalistas. No entanto deveria fazê-lo. (…) Sentir o que o sujeito pode suportar de angústia os põe à prova a todo instante”. Como psicanalista talvez, mas como sujeito, a angústia sufoca.
Ainda em janeiro, adoece. Diagnóstico: zika vírus. Não vira o mosquito nem sentira a picada. Nem o exame confirma. Uma semana antes vira a acompanhante da sogra, também portadora da doença de Alzheimer, com os exantemas do zika vírus. Então era isso. Zika vírus. Assim como o da acompanhante o dela também passaria em uma semana. Onze dias depois dá sinal de melhoras, passeia de barco, passou.
As pernas começam a formigar, depois os braços. Notícias no jornal dão conta de uma síndrome como consequência do vírus. A angústia assola. Faz sintomas. Os meses passam e todos os sintomas passam por ela. Faz fobia. Lembra da mãe, que dava a mão, levava ao médico, levava até para o massacre da Adelina Gorda.
A angústia da mãe salvara a sua vida. E agora, quem iria salvá-la?
Impossível ler o seminário 10. Por um tempo, sai de casa e leva o seminário 16, outro cartel. Abre o livro e procura, aqui não está escrito nada do que comentamos no WhatsApp, errei a página? Não, errei o seminário.
Passou a carregar o seminário 10 para onde ia. Carregava a angústia com ela mas a mantinha nas mãos, na bolsa, aonde pudesse enxergar, a uma distância segura.
“… a que distância colocar a angústia para lhes falar dela, sem pô-la imediatamente no armário e sem tampouco deixá-la na imprecisão?”, pergunta Lacan.
E responde: “Ora, meu Deus, à distância certa, ou seja àquela que não os coloca perto demais”.
Furos, agulhas, tubos, perpassam o real do corpo. Reviram o corpo.
Equipes médicas pesquisam, examinam, e nada, nenhum sinal do que faz sintoma naquele corpo. O corpo sente, mas não revela.
E “Essa angústia, que, segundo parece, vocês sabem regular e tamponar tão bem em si mesmos a ponto de ela os guiar …”, guiou o desejo de, a custa de muito esforço, permanecer na análise, manter a clínica e estar em Escola .
É novembro, os gânglios voltaram.
𝑯𝒆𝒍𝒆𝒏𝒂 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒔𝒕𝒓𝒐 𝑨𝒇𝒇𝒐𝒏𝒔𝒐
𝑷𝒔𝒊𝒄𝒂𝒏𝒂𝒍𝒊𝒔𝒕𝒂
Rio de Janeiro | 7/12/2016