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Um longo velório
A imagem e o sentimento de uma noite passada no cemitério velando meu pai se inscrevia como a mais dolorosa da minha vida. Não há como simbolizar, dar um sentido, a um corpo inerte, deitado dentro de um caixão, cercado por velas.
A noite não passa. O frio, apesar de amenizado pelo condicionador, nos congela os ossos. Silêncio e frio.
Nada acontece. Até que durante a madrugada fria o nariz do morto sangra e decidem fechar o caixão. As despedidas seriam antecipadas, nunca mais veria o corpo-forma do meu pai. Mesmo assim permaneceríamos ali, agora velando o caixão; na manhã do dia seguinte realizaríamos o enterro.
Até descobrir a doença da minha mãe eu acreditava que essa experiência permaneceria como a mais dolorosa da minha vida. Porém, descobri que é possível existir um velório muito mais longo, esse sem caixão e sem velas.
Alzheimer. Esse é o nome do velório que se dá com o morto ainda vivo, e que obriga não a uma noite de horror e de dor, mas a muitos dias e muitas noites em que o único evento possível não é um nariz que sangra, mas um corpo inteiro que perde sua forma enquanto o cérebro abandona as memórias de toda uma vida. Até mesmo a lembrança de quem se é. Morte lenta e gradual.
O luto pelo meu pai demorou três anos. Uma elaboração um tanto lenta, mas bem-sucedida, ao final da qual ele reviveu em mim de muitas maneiras. E ainda vive.
Mas a doença de Alzheimer mata devagar; a morte pode ser acompanhada passo a passo, como um reality show macabro.
Agora ela partirá. Não para o cemitério ou para virar as cinzas da cremação que ela cuidadosamente pagou em parcelas. Irá para uma clínica (diz-se “casa de repouso para idosos”), para ficar até o dia em que finalmente poderá virar as cinzas pagas com antecedência. Ela acredita que está na clínica, temporariamente, para tratar as dores nas pernas que a atormentam desde que começou a tomar a medicação para o mal que a acomete.
E um novo luto se impõe. Eu sempre começo pelo fim, e é preciso voltar um pouco mais. Quando solteira, morando com ela, todas as manhãs, enquanto eu secava os cabelos e concluía a minha maquiagem, ela levava no banheiro meu suco de laranja, batido com cenoura e folhas de gelatina sem sabor desmanchadas em água morna.
Depois, quando eu sentava à mesa do café, ela servia o leite na minha xícara e me entregava o misto quente feito com carinho. Ela sempre fazia as refeições com meu pai, então se ele já tivesse tomado café, ela apenas se sentava comigo para conversar.
Em seguida, eu saía apressada para o trabalho. Retornaria para o almoço e no final do dia, novamente, para o lanche feito às pressas para não perder a primeira aula na faculdade.
O último retorno ocorreria perto da meia-noite, quando encontrava o jantar pronto sobre o fogão. Era só acender o fogo, esquentar e comer, antes de tomar um banho e ir para a cama.
Todos dormiam. Se estivesse muito frio, eu encontrava na cama uma garrafa de vidro cheia de água fervendo que ela havia colocado ali para aquecer meus pés.
A vida seguiu assim até que eu, atendendo aos apelos do coração, voasse para bem longe dela.
No começo ia com o marido passar férias nessa mesma casa, com ela e meu pai. Depois começamos a dividir nossas férias entre a casa deles e a dos irmãos, em especial dois deles.
Até que depois da morte do meu pai passei a ir mais sozinha, já que se agudizava a implicância dela com meu marido, aquele que me fez voar para bem longe dela. Ela cobrava a conta dos mimos e paparicos. Afinal, como pude deixá-la, depois de tantos cuidados, carinho e desvelo? O acordo tácito havia sido quebrado, e eu é que o descumpri.
Lá por 2010, durante minhas visitas a ela, em Porto Alegre, com ou sem marido, havia alguns sinais dúbios de que existia algo nela além das implicâncias costumeiras da mãe magoada e cobradora de dívidas. Assim, perdeu-se um tempo que teria sido precioso para o tratamento. Depois de convencer a mim mesma de que havia algo errado, foi preciso convencer os irmãos.
Deu-se o início do longo velório, juntamente com o primeiro longo e doloroso luto. A perda é do que temos no outro, e mãe não é um outro qualquer. É “o” Outro!
A cada fase da doença, um novo velório. A cada velório, um novo luto. O primeiro durou cerca de dois anos.
A morte dói. Dói no corpo, é dor física. Sempre ouvi isso, mas só entendi no luto do meu pai, quando mesmo nos momentos em que a dor dava uma trégua e a alegria se insinuava, sentia como se meu coração fosse uma tela e sobre ele tivessem passado uma pincelada cinza.
A partir do início do tratamento foram necessários dois anos para que eu recuperasse a alegria e pudesse conviver com essa mãe doente de Alzheimer de uma maneira mais leve, sem tanto sofrimento.
Antes da doença, as minhas idas a Porto Alegre eram precedidas de algumas providências. Ela me esperava com tudo o que eu mais gostava. Preparava as minhas comidas preferidas e ia iao supermercado para abastecer a despensa com mimos.
Invariavelmente sobre a cama, já com lençóis trocados, havia um jogo de toalhas, um bilhete, chocolates. Uma vez uma vela em formato de anjo azul.
Agora era eu é que chegava na casa dela carregada de comidas congeladas que eram preparadas no Rio, antes de viajar. A maioria receitas que aprendi com ela e que, ao provar, ela elogiava como se nunca as houvesse experimentado antes.
Saía do avião, pegava um táxi e percorria as ruas da minha velha cidade até a casa dela. Deixava as malas e seguia para o supermercado para suprir eu mesma a despensa e a ausência dela que a doença impunha. Agora era eu que todas as manhãs arrumava a mesa do café, cortava o mamão, colocava o leite na xícara.
Com ela agora na clínica, deixo de ser a mãe da minha mãe para ser a moça que a visita: ela não sabe mais quem eu sou. O reality show tem um novo cenário e novos participantes.
Para mim resta mais um velório e mais um luto.
𝑯𝒆𝒍𝒆𝒏𝒂 𝒅𝒆 𝑪𝒂𝒔𝒕𝒓𝒐 𝑨𝒇𝒇𝒐𝒏𝒔𝒐
𝑷𝒔𝒊𝒄𝒂𝒏𝒂𝒍𝒊𝒔𝒕𝒂
Rio de Janeiro | 29 e 30/11/2015)
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