Uma experiência extrema de confinamento
Estou rodeada por um vazio muito grande. Eu não costumava pensar muito nele, já que tinha a mente cheia de meus amigos e de diversão. Agora penso sobre coisas infelizes ou sobre mim mesma. Demorou um bocado, mas finalmente percebi que papai, por mais gentil que seja, não pode ocupar o lugar do meu mundo antigo.
Anne Frank
O nosso vazio é estrutural, mas o fato de, durante o isolamento social, estarmos sem os preenchimentos que habitualmente camuflam e nos distraem da nossa falta/castração, estamos como a Anne “rodeados por um vazio muito grande”. O que pode, afinal, “ocupar o lugar do nosso mundo antigo”?
O diário de Anne Frank
O Diário de Anne Frank marcou de maneira fundamental a minha adolescência, direcionando por um bom tempo meu interesse para leituras de diários juvenis. Quando começou o confinamento lembrei que o diário escrito por Anne Frank poderia, de alguma maneira, nos esclarecer sobre o momento.
Não há paralelo possível entre as nossas condições de vida na pandemia e aquelas vividas por Anne Frank durante a Segunda Guerra, mas nessa live Fernando e eu caminhamos pela via das experiências psíquicas de Anne e o que elas podem nos ensinar.
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.Se isto é um homem | Primo Levi
Conversa de Analista | 18 de maio de 2020
Com Fernando Baron
Psicanalista. Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro. Contista (ou um psicanalista que faz da escrita um meio de expressão).
Referências
O Diário de Anne Frank | Anne Frank (escrito entre 1942 e 1944)